A Caça

Maitê Proença
O Globo 18/12/2008

Recentemente, em um programa Saia Justa, no meio de uma discussão sobre o macho moderno, me pus a defender a caça. Disse, basicamente que nós mulheres ganhamos tanto espaço nas últimas décadas - espaços que foram, desde sempre, redutos dos homens – e que enquanto avançávamos, os rapazes ficaram olhando perplexos esperando que aquilo fosse uma marola ao invés do grande movimento transformador de hábitos que virou. E que agora os pobres estão tontos sem ter onde manifestar sua masculinidade, não tem mulher para detonar, não têm boi para laçar, não há duelos de morte, não se enfrenta um javali para o sustento da família.
Assim, defendi a idéia de que se os rapazes empreendessem a caça -, que é esporte de homens, faria-lhes bem ao instinto frustrado, a todo esse lado primitivo primordial deprimido. E aí soltei a frase, "Se o desorientado do Bush caçasse, não teria invadido o Iraque". Pronto! Todas as sociedades de proteção aos animais, dos carrapatos até aos unicórnios, estão em cima de mim. Gente que possivelmente aprecia uma picanha, um franguinho de granja, um robalo asfixiado aos poucos nas redes de pescadores.

Pois vamos lá. A caça, antes de ser um esporte ou distração, foi sempre uma atividade milenar do homem. Uma atividade econômica e de sobrevivência. O homem foi caçador, antes de ser agricultor ou criador de gado. Nas tribos primitivas da Amazônia, os índios vivem ainda hoje sobretudo da caça e da pesca, e toda a organização econômica, social e política deles está feita em torno disso. O homem caça para dar de comer à família e fazendo o que todos os outros animais fazem na Natureza. Como disse Woody Allen, "a natureza é um imenso supermercado onde se caçam todos uns aos outros".

É claro que, com o tempo e nos países desenvolvidos, a caça deixou de representar uma necessidade econômica, para passar a ser uma forma de lazer, embora, mesmo em regiões da Europa, ela ainda represente um importante complemento alimentar. Mas o fato de a caça ter se tornado um esporte e não mais uma necessidade evidente, não faz com que os cromossomos do caçador se tenham extinto, assim como não apaga o ato cultural que a caça representa. Só aqueles que nasceram, cresceram e vivem nas cidades, aqueles que não sabem como funciona a natureza, o campo e o mato, é que não conseguem entender a íntima relação que existe entre a natureza e a caça.

A história da pintura, da literatura, da música, da escultura está repleta de exemplos de histórias ambientadas na caça - Picasso e Hemingway, para não ir mais longe. Picasso manteve, a propósito, uma polêmica pública com o filósofo espanhol Ortega Y Gasset, que era adversário da caça, com os argumentos clássicos da brutalidade e ect. Anos depois e após ter decidido estudar a sério o assunto, Gasset escreveu um livro em que se retratava, "Sobre a caça e os touros".

O que mudou ao longo dos tempos, e com o fim da necessidade econômica da caça, foi a necessidade de ela deixar de ser um "bem livre" e ter de passar a ser organizada. Não conheço o funcionamento da coisa em nosso país, mas na Europa, que pode nos servir de modelo, aonde já participei de caçadas, a caça desportiva é uma atividade economicamente relevante, sobretudo para as populações rurais, dando-lhes emprego, fixando-as nos campos, forçando-as a manter a agricultura (porque só há caça onde houver agricultura e sementeiras para as aves e outros animais se alimentarem). Há, para além da agricultura em função da caça, dos guardas-florestais, dos "batedores" e todos os outros que trabalham diretamente numa caçada, uma infinidade de pequenos hotéis, restaurantes e lojas de província que vivem da passagem dos caçadores e que, se isso acabar, estão condenados a abandonar as terras e ir procurar emprego na periferia das grandes cidades - cada vez mais desumanizadas e inabitáveis.

Por isso, porque se tornou uma atividade econômica importante, a caça está hoje organizada em toda a Europa. Não apenas o interessado tem de ter licenças e passar exames para poder se tornar caçador, como também é responsável pela própria existência de caça: ou criando-a diretamente ou pagando a quem o faz. Isto implica tratar do terreno da caça, limpa-lo, cuidá-lo, semeá-lo, fazer comedouros e bebedouros para os bichos e controlar a sua existência, de uma época para a outra. O sujeito não mata o que quer, mas o que pode: é o dono ou o grupo de caçadores que explora um terreno que determina, em cada ano, qual o limite de cada espécie que se pode caçar, sob pena de essa espécie se poder extinguir no ano seguinte. Porque a regra essencial é manter o equilíbrio entre as espécies.

Mesmo a caça grossa da África, que tanta impressão faz às pessoas obedece a estas regras: organização, controle das espécies, rentabilidade econômica para as populações locais. Ao contrário do que alguns julgam, não é qualquer um que pode ir matar um elefante na África. Primeiro, tem de se inscrever numa organização de caça local e comprar a respectiva licença, que anda em torno de 8.000 dólares por elefante - mais as despesas com a estada, os extras, ect. Depois, não mata o que quer, mas sim o elefante que as autoridades locais selecionaram - sempre um macho, já velho e fora da manada.

E esta é a maneira civilizada de controlar a espécie, não deixando matar de mais, mas matando o necessário para manter o equilíbrio entre as espécies e, ao mesmo tempo, fazendo disso uma atividade econômica que, em muitos casos de populações africanas, é quase a única fonte de rendimento disponível. Há alguns anos, o presidente Mugabe (que só faz asneiras e destruiu a agricultura no Zimbabwe), resolveu proibir a caça ao elefante. O resultado é que, em dois ou três anos, o excesso de elefantes começou a tornar a vida insuportável para as populações rurais, destruindo as colheitas e atacando as próprias aldeias. Então, quis atrair caçadores às pressas, mas como as organizações que o faziam haviam ido embora, teve de pedir ajuda a um organismo internacional qualquer, que veio dizimar os elefantes em excesso com uns sujeitos de helicóptero disparando balas envenenadas por cima da cabeça dos elefantes, que iriam morrer lentamente.

Ao contrário do que se pensa, o prazer da caça não está em matar. Está, acima de tudo, na fusão com a natureza, na compreensão que se redescobre de como funciona esse mundo de que tantos falam e tão poucos entendem. Perceber o que é uma linha de água, mesmo que não visível, como se deve caminhar no mato, como se faz uma emboscada, que frutos e que raízes se podem aproveitar, distinguir o canto e os hábitos dos animais, ver o estado das culturas, enfim, todo esse lado primitivo e primordial de Robinson Crusoe, que muita cultura urbana já matou dentro da grande maioria de nós - e é por isso que há crianças na cidade que não sabem que o frango tem penas, que o ovo vem da galinha e que os morangos não nascem numa árvore mas no chão. No fim de tudo, sim, resta ainda o prazer do tiro - não porque se matou, mas porque se acertou no alvo.

Mas, se isso é crueldade, eu pergunto o que será a matança doméstica do porco ou do galo à facada, ou a matança das vacas num matadouro e a morte lenta de um peixe num anzol ou asfixiado aos poucos numa rede de pesca? Será que os defensores dos animais sabem como se faz o foie-gras, como se extrai o caviar do esturjão ou, mais democraticamente, como se criam frangos num aviário? Ou será que sabem como morre uma perdiz na boca de uma raposa ou de uma águia? Eu, se fosse ave, preferia viver no mato como uma perdiz brava do que viver num aviário como um frango, e preferia morrer fulminada por um tiro do que decepada por uma guilhotina mecânica.

Ou, como reza um poema de Sophia de Mello Breyner, mãe de meu amigo e caçador Miguel Sousa Tavares:

"As pessoas sensíveis não são capazes de matar galinhas,
Porém, são capazes
De comer galinhas".

Esta é uma luta perdida, impossível vencer o politicamente correto. Mesmo assim, insisto: Cacem rapazes, exercitem instintos ancestrais, soltem seus bichos interiores à captura


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